sábado, 25 de dezembro de 2010

Ressignificando.


Vovó Eva Quando eu era pequena, meu avô me contava histórias. Muitas delas falavam de mulheres que tinham vivido tempos atrás, mulheres heróicas que aprenderam coisas importantes por meio de seus erros. Havia Sara, cujo marido chamava-se Abraão; Raquel, esposa de Jacó; e Ester, que era rainha. Só depois que ele morreu fui descobrir que aquelas histórias eram do Gênese, contadas por um rabino ortodoxo erudito, de barbas brancas, a uma devotada neta, filha de dois jovens socialistas agnósticos. A história de meu avô sobre vovó Eva e a serpente é ana verdade uma história sobre a importância da vida interior. No começo da história, vovó Eva é uma menininha, e vive de um modo bem parecido com o que eu vivia na época. Deus é o Pai e, como todos os pais, provê o alimento, o abrigo e todas as coisas necessárias à vida. Em troca, Eva obedece-lhe da mesma maneira que eu devia obedecer ao meu pai. A vida prossegue no jardim, muito parecida dia após dia. Pede-se muito pouco a Eva. Todos os animais e plantas vivem ali junto com ela, inclusive uma árvore muito bela, no centro do jardim, chamada Árvore da Sabedoria Divina. Deus deu a Eva orientações bem precisas com respeito a essa árvore. Ela pode comer os frutos de todas as demais árvores, mas os frutos desta são proibidos. De início ela aceita isso sem questionar, muito embora a própria finalidade da vida possa ser crescer em sabedoria. Com o passar do tempo, muito embora o jardim não mude, Eva muda. Começa a crescer, a tornar-se adolescente. Certo dia, ao passar pela árvore mais bela, uma serpente enrolada em seus ramos lhe diz: “Eva, eis uma das maças desta árvore. Por que não a come?” Naquele momento, meu avô sempre explicava que a serpente não era realmente uma serpente, mas um símbolo da ânsia humana por sabedoria, o poder sedutor do desconhecido e a infinita fascinação que o misterioso exerce sobre os seres humanos. A serpente é o primeiro mestre, e fala àquela parte de Eva que já não é mais uma menininha, mas alguém que busca. Eva lembra o que Deus pai disse. O fruto da árvore é proibido. Mas Eva é uma adolescente. Como a maioria das pessoas de sua idade, ela precisa descobrir por si mesma. Eva sente o magnetismo da maça. Atraída por ela, estende a mão para pegá-la, dá uma mordida. Aquilo que comemos torna-se parte de cada uma de nossas células e fica entremeado na própria estrutura de nosso ser. “Aquela maça não é diferente de qualquer outro alimento”, disse meu avô. Quando vovó Eva a come, a sabedoria de Deus torna-se parte de sua vida interior, uma sabedoria santa que ela carrega dentro de si, e não algo com que ela fala fora de si mesma. Ela agora traz a voz de Deus dentro de cada uma de suas células, como uma pequena bússola. Como seus descendentes, nós a trazemos também. Comer a maça possibilitou uma enorme mudança no modo de vida de vovó Eva. Ela não precisava mais viver na casa de Deus, na estufa, para estar segura. Pôde deixar aquele ambiente protegido porque trazia Deus consigo. Podia ouvir Deus se desejasse ouvir. Ao comer a maça, ela se tornou adulta e adquiriu a liberdade que tem o adulto de sair para um mundo de complexidade, aventura, responsabilidade e mudança. Para ter sua própria vida e fazer suas próprias escolhas. Como acontece com a maioria das crianças, os aspectos literais da história me preocupavam. “Mas vovô”, perguntei, “por que Deus disse a vovó Eva que ela não devia comer a maça se não era verdade?” Uma das características mais magníficas de meu avô era não mudar sua resposta a uma pergunta só porque a pessoa que a fazia era muito jovem. Ele me respondeu como se eu fosse uma colega estudiosa da Cabala. “Nashume-le”, disse ele, “essa é uma questão dificílima, uma questão que exige muita reflexão. A Bíblia está cheia de imagens de Deus. Deus como um pais autoritário, Deus apaixonado, Deus zangado, Deus ciumento, Deus fiel, Deus amoroso. Em um trecho Deus está caminhando sobre a terra, em outro seu sopro agita as águas. Em outro, ainda, ele é uma coluna de fogo. Mas Deus não é nenhuma dessas coisas. Essas coisas são imagens de Deus na mente dos homens. Para conhecer Deus talvez seja preciso questionarmos todas essas coisas”. O Deus em nosso interior parece demandar um tipo de atenção íntima dia a dia, momento a momento, em vez de apenas uma simples obediência. Eu tinha pena de vovó Eva. Isso me parecia ser muito mais difícil do que a obediência. A complexidade do mundo real exige que lutemos para ouvir o sagrado e que desenvolvamos a responsabilidade pessoal de viver de modo apropriado. Exige que nos mantenhamos acordados. Vovô apresentou-me Eva como uma pessoa adulta, em vez de uma pecadora. Só anos depois fui ouvir a versão oficial da história. Talvez agora haja algo para nós na versão de meu avô. Temos esperado muito de nossos especialistas e autoridades, de nossos médicos, políticos, técnicos e educadores, até mesmo de nossos rabinos, ministros e padres. Oferecemos a eles obediência, na esperança de que se disponham a responsabilizar-se por nos dar uma vida apropriada. É hora de encontrar o lugar de graça em nosso interior.



De Raquel Naomi Remen - Histórias que curam, conversas sábias ao pé do fogão.

2 comentários:

  1. Parabéns Ana, pelo Blog e mais ainda pelo site. Ecléticos! Boas reflexões.

    Abçs.

    Manuel Raposo
    BLOG: www.manuel-raposo.blogspot.com
    Twitter: @RaposoManuel

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